Mario Alvarez Martins
Na década de 90, o século XIX exalava os seus últimos estertores, que não eram fracos nem poucos. Múltiplos acontecimentos tornaram-se marcos relevantes na história política e social do Rio Grande do Sul e, até mesmo, do Brasil. Em 1891, apenas dois anos após proclamada e implantada a República, revolta-se a Armada contra o Presidente Deodoro da Fonseca, no Rio de Janeiro. Como represália, entre outras medidas radicais, o governo federal fecha e dissolve o Congresso Nacional, mas o Contra Almirante Custódio de Melo, em 23 de novembro, apodera-se do couraçado Riachuelo, em nome da esquadra, intimando Deodoro a renunciar. Antes disso, a guarnição militar do Rio Grande do Sul articula-se com aquela insurreição, ameaçando marchar para o Rio de Janeiro a fim de depor o governo. Como conseqüência, Júlio Prates de Castilhos, recentemente empossado na Presidência do Estado, é deposto a exemplo do que fora feito com governadores de outros estados. Em janeiro de 1892, os revoltosos da Armada são presos e encarcerados na fortaleza de Santa Cruz, mas revoltam-se em 1892, sendo derrotados por forças governistas, em renhido combate. Esses foram os fatos que precederam a mais violentae sangrenta revolução realizada neste Estado e no País, em 1893, denominada de Revolta Federalista, com a finalidade de combater os governos estadual e federal, este então sob a chefia do intolerante “Marechal de Ferro”, Floriano Peixoto. No Rio Grande do Sul, após uma fracassada experiência com o chamado” governicho”, Júlio de Castilhos, então com apenas 35 anos, reassume o governo estadual sob o manto protetor da Constituição positivista de 1891, baseada na doutrina de Augusto Conte, que fora por ele escrita e promulgada e que lhe concedia os poderes absolutos de uma “ditadura iluminada” e “hermeticamente disciplinada”, na qual ele era considerado um semideus.
Apoiado pela recém criada Brigada Militar, mais numerosa e bem equipada do que as unidades estaduais do Exército Nacional, lutou bravamente contra os revoltosos, os quais combateu sem dó nem piedade até agosto de 1895, quando a guerra civil terminou, após o exílio de seu grande líder, Silveira Martins, e a morte de seus mais destemidos comandantes, Gomercindo Saraiva - o Napoleão dos Pampas - e Saldanha Marinho, abatidos em emboscadas, o primeiro no interior do município de Santiago do Boqueirão, quando retornava de uma incursão vitoriosa até o Paraná; o segundo, no município de Quaraí. A oposição estava aniquilada e, os republicanos, liderados por seu patriarca, então unidos em torno do Partido Republicano-Rio-grandense (PRR), conseguiram “desbancar a superada oligarquia tradicional”, segundo afirmavam.
Iniciou-se a era de domínio republicano, que imperaria no Rio Grande com o poder absoluto de um regime autoritário, durante cerca de 37 anos, pois o “Patriarca” decidiu, por vontade própria, transferir a chefia do governo a um outro jovem republicano, eleito, num pleito sem adversários, Presidente do Estado, com apenas 34 anos de idade: Antônio Augusto Borges de Medeiros. Ele fora Tenente Coronel da Divisão Revolucionária do Centro e chefe de polícia, também positivista convicto, que pregava a eficiência administrativa por intermédio da moralidade nos negócios públicos e nas contas do governo, muito embora desprezasse essa linha de atuação no processo eleitoral, que era fraudado impunemente pela “metafísica do voto” e da democracia “científica”, que nada mais era do que uma ditadura disfarçada. Foi assim que o “Dr. Borges”, como o chamavam seus correligionários, perpetuou-se no poder até o ano de 1928, quando foi substituído por seu discípulo Getúlio Dornelles Vargas, que dois anos após liderou a revolução de 1930.
Foi nessa época e naquele ambiente de final de século, politicamente tumultuado, em instável estado de beligerância revolucionária que nasceu a nossa Faculdade de Medicina. Deve-se, aqui, fazer justiça a Borges de Medeiros, que logo que assumiu o Governo, em 1898, preocupou-se em incentivar a criação de instituições de ensino superior. Foi em seu governo, também, que foi elaborado e executado o projeto do então suntuoso prédio da Faculdade de Medicina, por ele inaugurado em1924, quando o Rio Grande se debatia numa nova e disputada guerra civil, cujo objetivo principal era combatê-lo e destituí-lo. Mais uma vez, “maragatos” e “chimangos”, antigos “pica-paus”, como eram alcunhados, respectivamente, os defensores do parlamentarismo, arregimentados no Partido Libertador, liderados por Francisco de Assis Brasil, e os adeptos do presidencialismo, do Partido Republicano Rio-grandense, presidido por Borges de Medeiros, apoiado por Getulio Vargas, Osvaldo Aranha, José Antônio Flores da Cunha, João Neves da Fontoura, Lindolfo Collor e tantos outros. Eles passaram a ser chamados de “chimangos” após a divulgação clandestina do satírico poema campeiro “Antonio Chimango”, de autoria do prestigiado médico e republicano histórico, Ramiro Barcellos, face a profundas divergências com a orientação política de Borges de Medeiros. É importante ressaltar que, nos últimos anos de seu governo, o Presidente do Estado não contava com a simpatia e o apoio da maioria do povo rio-grandense e, muito menos, dos estudantes universitários, entre eles os “acadêmicos” de medicina, apesar de seus inequívocos serviços prestados às faculdades gaúchas. Tal fato determinou perseguições e até mesmo agressões por piquetes de forças policiais a grupos estudantis.
Essa sucinta revisão histórica foi feita com a finalidade de demonstrar as circunstâncias, fatos e aspectos pitorescos que acompanharam a nossa Faculdade, desde a sua fundação até a inauguração do seu prédio histórico, que jamais deveria ter sido substituído. Foram anos de incertezas e controvérsias, que, apesar de tudo, testemunharam um inequívoco progresso sócio econômico e cultural. Muitos dos estudantes e médicos, que ali se formaram, vivenciaram as grandes inovações do século XX - o século do milênio - um século que valeu por mil anos, logo, um século milenar. Porto Alegre, por exemplo, de uma pequena cidade aldeia, na virada do século, transformou-se na grandiosa metrópole de hoje, cercada de um progressista e amplo anel metropolitano. As várias gerações de estudantes que freqüentaram seus bancos testemunharam ou tomaram conhecimento das grandes descobertas dos últimos cem anos desde que a nossa Faculdade foi fundada. Disso foram beneficiários os acadêmicos que hoje representam e honram a Academia Rio-grandense de Medicina. Cumpre-me fazer um sumário depoimento sobre dois deles, conforme determinam a regras estabelecidas pelos idealizadores deste Livro: o Patrono da Cadeira 24 e de seu atual titular, cujo traço comum é o de terem nascido na peculiar cidade de fronteira - Santana do Livramento - irmã gêmea de Rivera, no Uruguai, cuja convivência pacífica e solidária não encontra similaridade no mundo contemporâneo.
O patrono - Mario Alvarez Martins, nasceu e cresceu em Santana do Livramento, cidade justaposta à “Linha Divisória”, uma forma peculiar de delimitar dois países, pois essa suposta “linha” jamais foi vista, reclamada ou desrespeitada; sabia-se, apenas, que ela deveria estar entre um marco (estrutura de cimento com um formato característico) e outro, nos quais a garotada subia ou se protegia para simular guerra com “los pibes de allá”. Mário não escapou a esses hábitos, pois residia muito próximo ao “areal” que separava as duas cidades irmãs - Rivera e Livramento- mais tarde substituído por um majestoso e hoje frondoso Parque Internacional. Outros meninos (guris), também moradores nas cercanias do descampado que mais tarde seria a Praça José Bonifácio, que como ele estudariam Medicina, por lá também passaram: Rubens Maciel, Mário Rangel Ballvé, Carlos Osório Lopes, Hugolino de Andrade e o autor destas linhas. Seu pai, Montecristo Martins, um respeitável comerciante da nossa vizinhança, eu conheci, na minha infância, narrando ao meu pai os sucessos de seu filho nos bancos acadêmicos. Eu tinha apenas sete anos quando ele se formou em Medicina, no ano de 1933. Lembro-me quando voltou aos pagos, recém formado, em companhia de Rubens Maciel, que morava no outro lado da “Praça” e que recém concluíra o primeiro ano da “Faculdade”- assim se dizia na época. E eu dizia ao meu pai: “um dia eu serei como eles, pois eu já estou alfabetizado e sei bem o que quero”.
Livramento foi uma cidade muito belicosa, pois foi o centro das ações revolucionárias, por estar incrustada no alto da coxilha de Haedo, por onde penetravam as forças revolucionárias arregimentadas no Uruguai, sendo Rivera a capital do exílio dos maragatos, daí resulta a formação do caráter dos santanenses: são bravos, leais, francos, simples, sem formalismo e sem hesitações; abominam o cinismo e não perdoam a traição; alguns de nossos parentes foram degolados porque recusaram-se trair seus amigos e correligionários, até mesmo com um facão no pescoço (nas “goelas” como de dizia então). Mário Martins, descendente da tradicional família Alvarez, por parte de mãe, não poderia fugira a essas regras. Sua vida e sua obra refletem com fidelidade “os traços marcantes de sua personalidade”, conforme testemunho de um de seus discípulos, que com ele conviveu quase trinta e cinco anos - David Zimmerman. Outro colega que com ele conviveu cerca de meio século, o brilhante escritor e também psicanalista, Cyro Martins, sobre ele escreveu: “Suas palavras e intenções eram sempre diretas e transparentes, não raramente implacáveis. Era um homem talentoso, sem vaidade e de um bom senso incomum. A todos dava impressão de seriedade, ainda que possuísse um senso de humor muito vigilante para os fragrantes da vaidade”.
Logo que concluiu o curso ginasial, em sua cidade natal, deslocou-se para Porto Alegre, a fim de cursar os preparatórios para ingresso na vida universitária – assim era naquela época. Quando embarcou no trem, único meio de condução para uma viagem longínqua, já ouvia os clamores da campanha sucessória de 1922 e os primeiros tiroteios das revoluções e levantes que ensangüentaram os campos do nosso pampa em 1923 e 1924. Na capital gaúcha, encontrou e iniciou uma longa amizade com seus companheiros de estudos e tertúlias, que com ele compartilharam as “repúblicas”– casas onde residiam os estudantes menos abastados: Cyro Martins, Lino de Mello e Silva, Carlos Tetamanzzi e o poeta Mário Quintana. Todos jovens sonhadores na “flor da mocidade”, adolescentes entre 17 e 18 anos, que sonhavam com um futuro promissor. Lá pelos anos 1926-27, Mário, Cyro e Lino, entusiasmados com os livros de psiquiatria que surgiam na época, decidiram estudar medicina, já com a mira voltada para a psicanálise. Já como primeiro-anistas rondavam o São Pedro e furavam as aulas de psiquiatria do sexto ano, de Luiz Guedes.
Enquanto cursava a Faculdade, duas grandes revoluções eclodiram no Brasil: a de 1930 em protesto contra a grosseira fraude eleitoral que dera falsa vitória ao paulista Júlio Prestes, liderada por Getúlio Vargas e que redundou em sua ascensão à presidência provisória do Brasil, e a de 1932, deflagrada em São Paulo a favor de uma convocação de um Congresso Constituinte, cuja eclosão foi abortada em curto lapso. Em ambas, muitos estudantes viram-se evolvidos, pois que eram solicitados a se alistarem nas tropas revolucionárias, como voluntários. Felizmente não houve muitas lutas e combates, pois os gaúchos, à medida que avançavam em direção ao Rio de Janeiro, então capital federal, não encontravam resistência.
Mário formou-se em 1933, tendo optado por receber seu diploma no gabinete do Diretor da Faculdade, o “velho Sarmento Leite”, como era carinhosamente chamado, junto com Cyro Martins, porque ambos enfrentavam dificuldades econômicas e não puderam adquirir o tradicional “smoking” utilizado nas formaturas da época. Lembro-me quando seu pai, Montecristo, um abastado comerciante queixou-se ao meu pai, de quem era amigo, que houvera perdido toda sua fortuna na crise econômica de 1930, que atingiu todo mundo, como conseqüência do “crash” da bolsa de Nova York, em 1929. Lamentava que não lhe foi possível ajudar seu filho como planejara. Meu pai consolou-o, mas vi seus olhos marejados de lágrimas, porque estava passando por uma situação semelhante. Apesar dos meus sete anos, meu raciocínio deslocou-se no tempo, vislumbrando meu futuro. Apesar disso, poucos dias após, vibrei com a silhueta de Mário, recém chegado de Porto Alegre, passando na frente de minha casa, com um rutilante anel de doutor no dedo, atravessando a famosa “pracinha” que separava nossas casas. Com ele, chegaram Hugolino Leal de Andrade, que se formara no Rio de Janeiro, e Silvio Pinheiro Ribeiro, ambos mais tarde meus grandes amigos e impulsionadores. Eu corria à porta de minha casa para vê-los passar, tal o desejo de um dia ser como eles. Não imaginava, porém, que em minhas futuras férias da Faculdade viria a trabalhar com eles, como se colega fosse. Com Hugolino, vi as primeiras radiografias de minha vida; com Sílvio, fiz minha primeira cirurgia de apendicectomia. Aquilo foi demais para os meus vinte anos. E eles me diziam: “as gurias tu verás de noite, de dia é conosco”.
Infelizmente eu não consegui ver mais Mário; seu pai dissera ao meu que teve que tentar a sorte no interior de Carazinho, num distrito chamado Boa Esperança - hoje Colorado. Lá trabalhou quatro anos, até retornar para Porto Alegre, após casar-se com a bageense Zaira Bitencourt, em 1936, sua companheira de estudos e de trabalho pelo resto de sua vida. No ano seguinte, 1937, houve mudança no governo. Com o avento do Estado Novo, foi nomeado interventor federal o General Daltro Filho, em substituição ao republicano José Antônio Flores da Cunha, que viu-se obrigado a exilar-se em Montevidéu. Ele revolucionou a Saúde Pública no Rio Grande: construiu um novo pavilhão na Santa Casa, que leva seu nome e nomeou Diretor do então Departamento de Higiene o sanitarista Bonifácio da Costa, que abriu concurso para todas as categorias de funcionalismo público - que antes eram nomeados por apadrinhamento político, inclusive a de médico sanitarista, criando e construindo postos e centros de saúde, que até hoje existem. Foi assim que começou a nascer o pioneiro da psicanálise no Rio Grande do Sul e um dos mais brilhantes psicanalistas do país e da América do Sul. Ao lado de Cyro Martins, Victor de Brito Velho e Luiz Ciúla, submeteu-se ao concurso realizado na Faculdade de Medicina, ante uma banca brilhante, digna de um concurso de Cátedra: Antônio Saint Pastous, Diretor da Faculdade de Medicina, Fábio de Castro, Professor Catedrático de Neurologia, e Celestino Prunes, titular interino da Cátedra de Medicina Legal. Os quatro foram aprovados e nomeados médicos psiquiatras do Hospital Psiquiátrico São Pedro. Foi, também, convidado para ser médico residente do Sanatório São José, onde passou a morar com sua família, durante dois anos.
Em 1942, teve início um nova e promissora fase de sua vida, que se concretizaria dois anos após. Tomou conhecimento de que, emBuenos Aires, havia um grande centro de formação analítica; para lá se deslocou incontinente, lá permaneceu cinco longos anos sob a incomparável orientação de Angel Garma e Celes Ernesto Cárcamano. Assim, ele e Zaira, segundo David Zimmermann, “tiveram a fortuna de conviver, receber ensinamentos e supervisão coletiva e individual de um grupo de pioneiros - além de Garma e Cárcamano, Luiz e Arnaldo Rascovsky e Enrique Pichon-Rivière”.
Ao retornar a Porto Alegre, em fevereiro de 1947, iniciou o exercício da psicanálise em nosso meio, retornando às suas atividades no Hospital São Pedro, onde criou um verdadeira e respeitável escola de psicanálise no Rio Grande do Sul, transformando a modesta e vetusta Divisão Pinel, transformando-a no maior centro de irradiação de ensino e pesquisa da psicanálise no Brasil. Para isso, contou com a colaboração de uma brilhante equipe de psicanalistas, tais como David Zimmermann, mais tarde seu substituto na liderança do grupo, Jaime José Lemmertz, Ernesto La Porta, Paulo Guedes, Roberto Pinto Ribeiro, Luiz Carlos Meneghini, Cyro Martins e Celestino Prunes, que o ajudaram a elevar o prestígio da psicanálise do Rio Grande a níveis de alta representatividade no cenário científico nacional e internacional.
Apesar de sua formação psicoanalística de escola, que o transformou num símbolo nacional da especialidade, além de ter sido o fundador e presidente da Sociedade Psicanalítica do Rio Grande do Sul, graças ao seu prestígio reconhecida pela Associação Psicanalítica Internacional, Mário Martins não deixou uma grande produção científica publicada em periódicos nacionais e internacionais. Essa não era sua área de preferência. Apesar disso, escreveu uma série de artigos e ensaios, principalmente na área da epilepsia. Esses estudos foram analisados e dissecados pela inteligência aguda e perspicaz de David Zimmermann, em seu artigo depoimento “In Memoriam – Mário Alvarez Martins 1908-1881” – Rev. Bras, Psicanál. 15. 325-329, 1983.
Mas a maior homenagem que poderia ter recebido foi-lhe proporcionada por seus discípulos, ao considerá-lo patrono e darem o seu nome à Fundação Universitária de Psicanálise. Cyro Martins, seu amigo e companheiro de todas as horas, que me precedeu como acadêmico na Cadeira da Academia Rio-grandense de Medicina que tem Mário Martins como patrono, fez um notável “Depoimento”, in “Mario Martins Psicoterapeuta”, Arq.Psiq.Psicot. Psicanal. 2:2, 129-135, 1995.
Biografia escrita pelo Acadêmico Rubem Rodrigues